Durante este mês de janeiro dediquei-me a leituras e análises a respeito do Òrìsà Èsù, denominado Bará em nossa prática religiosa aqui no Rio Grande do Sul, selecionando alguns Itans ou trechos de obras que pudessem, de alguma forma, somar no aprendizado e compreensão acerca de nossa liturgia. Não é uma tarefa fácil, pois o gênero tem milhares de publicações, porém, em sua grande maioria, a fonte é insegura. E há centenas de mitos que em nada condizem com as crenças e feituras, os chamados “palha”, que tendem apenas a confundir ou criar impressões surreais, muitas vezes negativas, a respeito das divindades e demais elementos da cultura yorubana. E quando trata-se de Èsù, essas “palhas negativas” aumentam consideravelmente, pois é o Òrìsà mais preconceitualizado em terras ocidentais; inclusive em nossas práticas litúrgicas enxergamos esse “pudor ocidental”, especialmente aqui no Sul do Brasil.
Um dos principais exemplos disto está na substituição do principal símbolo do Òrìsà Èsù, o Ogó, bastão em formato de falo(pênis), pela chave, um símbolo “ocidentalmente aceitável”. Vemos porém que Èsù / Bará não é simplesmente um “abridor de portas”. Isso designa apenas uma de suas várias funções dentro da crença yorubá. Ele é aquele que ultrapassa todas as portas, todos os limites, dentre todos os “mundos”, os espaços do Òrun e do Àiyé. Tem esse poder para cumprir sua função de comunicador universal, pois é ele quem estabelece a comunicação entre o ser humano e Olódùmarè (Deus Supremo), entre ser humano e Òrìsàs(divindades), entre o ser humano e demais entidades, entre Òrìsàs e Olódùmarè inclusive. Bem sabemos que não há como praticar qualquer ritual religioso ou oferendar o que quer que seja sem antes agradar Èsù. Não é apenas uma coincidência aleatória ele ser o 1° a ser chamado e agradado em qualquer cerimônia. Sem ele não há comunicação! Então tudo o que se fizer sem Èsù não alcançará sua finalidade, não chegará a quem se destinar, não haverão Òrìsàs “comendo”, dançando, recebendo oferendas e sacrifícios... Eles nem saberão do que está acontecendo, pois sem Èsù não existe o elo entre o material e o espiritual.
A partir deste princípio, podemos perceber o porquê da necessidade individual de cada ser iniciado ter assentado seu Èsù individual, o porquê de cada Òrìsà ter o seu Èsù, responsável por “trabalhar” para ele. Caso não haja o Èsù ,ele(o Òrìsà) não receberá suas oferendas e sacrifícios. Assim como nós, seres humanos, para estarmos vivos, necessitamos dessa ligação entre o corpo material(ara), a cabeça(orí), a energia vital(èémí), espírito/alma(Òjììji). E é Èsù quem estabelece esse elo. Não é por acaso que quando alguém falece no mundo material usa-se a expressão “Bará abandonou o corpo”, assim como não é por acaso que o 1° passo do ritual de desligamento é o “despacho” do(s) Bará(s) pessoais da pessoa em questão. Obará é um dos títulos do Òrìsà Èsù, que significa “Rei do Corpo” (Obá: rei; Ara: corpo material).
O Ogó simboliza bem mais do que apenas masculinidade. Representa fecundação, sem a qual não existe vida, transformação, abertura, multiplicação, continuidade, disseminação do àse. Também é o bastão que permite a Èsù locomover-se de um lugar a outro em milésimos de segundos. Este símbolo, julgado na ótica cristã-ocidental como símbolo de demonizarão e promiscuidade, é uma exaltação da vida em sua plenitude, do àse que se transforma e se renova, dando continuidade aos milagres da vida e da natureza, exaltação da imensurável sabedoria de Olódùmarè.
Èsù também é conhecido como “provocador de situações”, aquele que “troca a lua pelo sol e o sol pela lua”, que brinca com a ordem natural das coisas. Quantas vezes falamos ou ouvimos dizer: “Quando resolvo um problema aparece outro!” ou “Quando acerto uma área de minha vida, aparece problema em outra!”. É Èsù! Aquele que está sempre nos colocando um novo desafio no caminho, um novo problema para resolver, muitas vezes sendo chamado de desordeiro e provocador de problemas. Porém, se olharmos através da perspectiva de que àse é força vital em movimento, em contínua transformação e renovação, a estagnação é que pode ser encarada como “contra-àse”, como desordem, desequilíbrio. Então Èsù ao invés de ser o desordeiro, surge como quem coloca as coisas na ordem natural de transformação, mutação e movimento. É aquele que traz à nossa vida os desafios, oportunidades de crescimento, mudança, renovação e superação.
Èsù ainda é conhecido como o “fiscal do àse”, o responsável por premiar quem cumpre suas obrigações, bem como por castigar os que as deixam de lado. Através da crença da qual a oferenda é a restituição ritualística de parte do que consumimos, que nos é dado pela natureza, pelos Òrìsàs, por Olódùmarè, e a maneira de demonstrarmos gratidão e reconhecimento de que tudo parte desse Poder, inclusive nós mesmos, nossos corpos, nossa energia vital, nosso orí, nossa alma; constitui uma obrigação do restituir ritualisticamente o que nos é dado por Olódùmarè, para garantirmos a continuidade da vida e das bênçãos que recebemos dos Òrìsàs e da natureza (ver "Por que fazer oferendas e sacrifícios?_ A ida de Èsù e Òsétùwá ao palácio de Olódùmarè "). Èsù é responsável em garantir que façamos nossa parte para manter o equilíbrio do sistema. E esta regra não aplica-se apenas aos seres humanos, pois também as próprias divindades estão a mercê deste poder. A frase "Èsù Òtá Òrìsà" (Èsù inimigo de Òrìsà) faz alusão do papel de Èsù como fiscal inclusive das obras dos Òrìsàs, devendo comunicar qualquer ato a Olódùmarè. De tudo deve-se prestar contas perante o Poder Supremo, e a autonomia nesse campo de visão é sempre relativa. A toda ação corresponde uma reação, essa é uma das leis da natureza, uma das leis divinas. E dela nem mesmo as divindades escapam.
Èsù longe de ser um poder negativo, como muitas vezes encarado inclusive por adeptos da religião dos Òrìsàs, é um Òrìsà primordial para manutenção da vida e do sistema no qual ela acontece. Um dos Òrìsàs mais próximos a Olòdùmarè e seu fiscal perante o homem e perante as divindades.
É o comunicador, o multiplicador, o transformador, o fecundador, o desafiador, o elo; energia dinâmica inesgotável como o próprio àse!
Èsù fi ire bò wà o.
Èsù faça nossas vidas plenas de coisas boas!
Làlúpo!
Ìyálórìsà Fernanda Ìyánláfémi t'Òsun Doko
Um comentário:
Adorei os comentários sobre essa divindade tão importante e tão descriminada, orixa que pode tanto trancar como destrancar os nossos caminhos, pois sem o Orixa Bará nada se faz.
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